Janet Sobel – a avó do drip painting

Expressionismo Abstracto Americano é uma corrente que evoca um leque preciso de artistas: Jackson Pollock a encabeçar, Lee Krasner na sua sombra, De Kooning numa amigável rivalidade, Joan Mitchell, Cy Twombly, Mark Rothko, Ellen Frankenhalter, Robert Motherwell, entre outros. Janet Sobel é, contudo, um nome ainda esquecido.

Quem é Janet Sobel, no meio disto tudo? A mulher que, antes de Pollock, empregou a técnica do dripping pela primeira vez, e que tudo indica ter influenciado Pollock na sua icónica forma de expressionismo abstracto. Greenberg e chega a mencioná-la num ensaio – the crisis of the easel painting, uma menção cansada e rápida, de um leque de artistas que, de acordo com o crítico, alcançaram a independência da sua própria criação – além de reportar no efeito que a sua pintura teve em Pollock. Mas a sua carreira, embora notável, foi demasiado breve – não mais do que alguns anos.

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Janet Sobel no seu apartamento/estúdio

Janet Sobel nasce na Ucrânia em 1894 e emigra para os Estados Unidos em 1908. Embora argumento frágil, há quem aponte as suas origens russas como um ponto de partida para o seu abstraccionismo. A realidade é que existe a possibilidade de Sobel não ter tido um contacto real, sólido, com os construtivistas russos, se não talvez mais tarde, e também que o expressionismo abstracto norte-americano se encontra no pólo oposto dos construtivistas russos. É preciso relembrar que Pollock foi bandeira publicitária do país na década de 50 e que esta corrente ganhou força no chamado macartismo. Sobel, no seu curto percurso, pareceu sempre inteiramente focada nas técnicas que viriam a dominar o expressionismo abstracto.

Cometeu, contudo, um erro aos olhos de Greenberg. Nunca se afastou inteiramente da figuração, chegando até a incluir figuras tipicamente associadas ao folclore. Como muitos pintores, o seu abstraccionismo cresceu a partir da própria figuração – uma marca do tempo em que Sobel vivia. Na verdade, o seu desenvolvimento da figuração para a abstracção ocorreu tão naturalmente quanto para os restantes artistas do expressionismo abstracto. Mas para Sobel, a figuração nunca pareceu ter sido uma característica em detrimento da pintura, como Greenberg e alguns dos expressionistas abstractos acreditavam. Sobel antes parece criar um elo de ligação entre o drip painting e a figuração expressionista/primitivista dos inícios da década de ’40. E talvez aí encontremos uma razão para a história da arte a ter ignorado.

Isso, e o facto de ser mulher. É sabido hoje que o expressionismo abstracto se tornou a imagem de marca propagandística da América pós-segunda guerra mundial, um estilo artístico que, além de corresponder a um ideal de nacionalismo na arte das elites, combatia o estilo predominante no mundo oposto, bloqueado pela guerra fria: o realismo socialista de Estaline. A imagem do drip painting passou a ser associada demasiado facilmente ao pintor relaxado, masculino, viril, segurando um cigarro em descuido numa postura predominante sobre as suas obras. Uma dicotomia interessante de se observar são as famosas fotografias captadas por Hans Namuth de Jackson Pollock, que eternizaram o termo “action painting”, a partir de Rosenberg, mostrando-o em trabalho, e aquela publicada pela revista Life de Helen Frankenhalter, numa postura delicada, cuidada, sobre as obras que, essencialmente, implicam o mesmo tipo de movimentação de Pollock. Põe-se a questão, teoria de arte à parte, porque seria mais importante para Namuth documentar a acção de Pollock do que para a revista Life captar o mesmo de Frankenhalter.

Posto isto, Janet Sobel, que começou a pintar já avó, e que até então levou uma vida conservadora, não seria diferente, apesar de uma carreira, embora curta, notável. Talvez por isto, Harold Rosenberg também não menciona Sobel, de que haja conhecimento. De Rosenberg e Greenberg, apenas registo do último existe perante a sua admiração pelo seu trabalho, e anos mais tarde, este vem mesmo afirmar que foi numa das exposições da artista (talvez a exposição a solo de 1946, ou a primeira em que colaborou com Peggy Guggenheim, em 1944) que Pollock se deixou influenciar por aquelas telas de grandes dimensões de tinta pingada. Contudo, André Breton e Max Ernst consideraram-na, desde cedo, uma surrealista, e foi através do último que, depois de apresentar o trabalho da pintora à sua esposa, esta chegou às galerias de Peggy Guggenheim em 1944, numa exposição intitulada Art of This Century.

Para entender melhor esta visão de uma “artista mulher” na década de ’40 e ’50, uma crítica – ironicamente escrita por uma mulher – à sua obra demonstra-o. A primeira coisa que a crítica descreve é o aspecto físico de Janet Sobel e que ela se parece:

buxom, pink-cheeked, round-faced, and dressed in a neat cotton print, looks just like any other Brooklyn housewife. You picture her over a stove on a warm Summer day, irritatedly shooing her grandchildren out of the kitchen, then relenting and giving them that mid-afternoon piece of cake.

Ressalta-se o inédito de uma mulher de especto conservador – e que realmente levou uma vida recatada, junto da família, até aos netos nascerem – ser, afinal, a artista por de trás de tamanhas obras. E semelhate à fotografia de Frankenhalter, sobressai uma das coisas que, à decada de 40, se esperava da mulher, artista ou não: a sua aparência.

Dona de casa e artista auto-didacta

Não é certo de como terá nascido a ligação de Sobel pela pintura, mas sabe-se que começou a experimentar com os materiais de pintura do seu filho, Sol Sobel, e que este não só a encorajou como se tornou no seu principal agente. Por este meio, Sobel tornou-se amiga de John Dewey, filósofo americano, e despertou, uma vez iniciada a sua carreira de pintora, a atenção de uma série de artistas, alguns já mencionados, então na linha da frente do cenário comercial americano. A carreira, contudo, foi curta. Tendo iniciado a sua pintura em finais da década de ’30, possivelmente 1939, conseguinte expor pela primeira vez em 1943, em 1947 nota-se o fim da sua actividade depois de, nesse mesmo ano, a artista se ter mudado, com a sua família, de fora do centro artístico de Nova Iorque para Nova Jérsia.

Não existe, até à data, evidência alguma, documental ou de outro tipo, de que Janet Sobel tenha tido qualquer conhecimento de história da arte. De facto, tudo indica que, não tendo tido nenhuma aprendizagem na arte, salvo talvez algum contacto com a cena artística do seu tempo, Janet Sobel aprendeu a pintar sozinha.

A imagem de uma dona de casa comum que se torna uma auto-didacta na arte do seu tempo e que tão rapidamente demonstra um talento inato para a cena artística de então só pode ter sido atraente para a crítica. Na verdade, Sobel nunca sofreu os esforços comuns de um artista que luta pelo reconhecimento. Foi através do seu filho Sol que as suas obras chegaram aos nomes mais importantes da cena artística nova-iorquina e que a lançaram para a ribalta: apresentou-a, por exemplo, ao também emigrante ucraniano Marc Chagal, com quem consta que falava russo, bem como a Max Ernst e ao filósofo norte-americano John Dewey.

Quando tentamos aprender mais sobre esta figura obscura, parece-nos sempre que são as pessoas à sua volta que mais se pronunciam, que mais ensinam sobre Janet Sobel, e que é a própria Janet Sobel quem adopta a posição passiva. Na investigação de Libby Seaberg, por exemplo, conclui-se que Sobel, cujo marido adoptou cidadania americana em 1922, nunca procurou adoptar a cidadania estadunidense. De igual forma, não parece haver qualquer registo de que Sobel tenha igualmente votado, ao contrário do marido e filho. Os autores da biografia, galardoada com o prémio Pullitzer, de Pollock afirmam ainda que Janet Sobel, ao ter conhecimento que o artista recebeu a notoriedade pela “invenção do drip painting”, contactou um coleccionador de arte, Sidney Janis, para afirmar que fora ela e não Pollock o inventor da técnica, mas não existe qualquer evidência – nem tão pouco na memória da sua família sobrevivente – de que tal tenha ocorrido. Gail Levin afirma ainda que uma das razões para Sobel ter deixado de pintar se deve a uma reacção alérgica causada pelo óleo, mas existem ainda evidências de que os próprios filhos da artista terão encontrado outros tipos de tinta para a mãe que combatessem a alergia.

Uma pluralidade de vozes sobrepõe-se à da própria Janet Sobel, quando tudo indica que a artista era naturalmente passiva na sua postura, cujo sucesso e talento chegou às galerias mais importantes e conquistou a crítica nova-iorquina também graças ao esforço e contactos do filho Sol Sobel.

Sobel move-se fluidamente entre a figuração primitivista e o culminar do expressionismo abstracto – o dripping – consagrado a Jackson Pollock. Mas existe um natural distanciamento entre a artista e a crítica, dominada por Greenberg acima de tudo, do seu tempo. Isto poderia, em qualquer outra instância, ser talvez uma falha, mas no caso de Sobel, existe uma espécie de sinceridade que, antes de responder à intelectualidade por vezes tão presente na pintura do seu tempo, responde à própria visualidade: como se Sobel aprendesse primeiro com o pincel, depois com o olhar.

Em algumas das suas pinturas, as camadas de tinta acumulam-se de tal forma que formam relevos sobre a tela, mas ainda assim, estas camadas de dripping não compõem a tela simplesmente numa dança abstracta imposta pela presença do corpo sobre o espaço em branco, aberto sobre o chão e abaixo de si, mas figuras que se realçam através dos pingos e riscos de tinta. O total abstraccionismo louvado por Greenberg, que o levou a hastear Pollock como esse campeão do expressionismo abstracto, talvez seja rejeitado por Sobel, ao que tudo indica, por uma mera questão de gosto, se não vontade, da parte da artista – da mesma forma que De Kooning, ultimamente, se afastou dos princípios greenbergianos.

Há quem aproxime as obra de Sobel às artes decorativas. A sobreposição de tinta e as figuras primitivas parecem evocar as figuras presentes em algumas artistas feministas, ainda por vir, nomeadamente as que trabalham com os métodos tradicionalistas, como o trabalho de fiar ou de costura. Seria, contudo, essencial analisar-se que influências da terra natal da artista poderiam ter incidido sobre a sua obra.

Independentemente de parte destas influências virem das suas raízes ucranianas ou não, Sobel é uma imagem de marca do expressionismo abstracto americano. Mesmo as suas pesquisas figurativas, que a conduziram até ao expressionismo que hoje conhecemos, têm um contexto na sua época. Embora estas figuras apresentem uma espécie de ingénua representação de um Modigliani, preenchem-se de pingos de tinta em camadas grossas que caracterizam o trabalho de Sobel. Por outro lado, as suas figuras revestem-se de um ingenuismo caracterizado por essa tentativa de alcançar a forma mais ausente de intelectualidade, que em Sobel parece tão genuína, certamente graças à sua característica auto-didacta.

Na sua vida, contudo, existem lacunas por preencher que talvez definirão a vida desta artistas que viveu uma carreira rápida e fugaz, mas de sucesso e eficácia tal que foi capaz de cativar os maiores nomes da arte do seu tempo.

De igual modo, devemo-nos perguntar porque esqueceu a história da arte aquela que viria a antecipar o drip painting que para sempre ficaria associado a Pollock? Sendo certo que este argumento não procura entender quem chegou primeiro onde, e quem ganhou que corrida, uma vez que, raramente na arte, as inovações resultam de quem terá chegado primeiro, mas quem interpretou ou re-interpretou uma certa realidade de um modo competente e sólido. Talvez tenha sido esse último factor que falhou no percurso de Sobel: a ausência de uma base teórica, de um pano de fundo crítico, ou mesmo de um crítico que a empurrasse na direcção certa, como Pollock – é caso para o afirmar – teve a sorte de o ter (não retirando todo o mérito que a Sobel pertence graças se não a si mesma). Oportunidades não faltaram, mas a sociedade não tinha esse lugar de expressionista abstracta preparado para Sobel. Fankenhalter, Lee Krasner e Joan Mitchell o conseguiram, até certo ponto; mas Sobel possuía já um currículo extensíssimo de mãe, avó e mais tarde viúva que tomou conta dos negócios do falecido marido. Por força extrena ou por vontade própria (talvez nunca o saberemos na realidade), Sobel acabou por abandonar a pintura; por força da sociedade, depois da sua fama vivida, nunca mais teve um lugar.

Se o telefonema a Sidney Janis é real ou não, nunca o saberemos. Mas conseguimos compreendê-lo.

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